A hospitalidade da língua do teatro traduzido
Walter Lima Torres Neto[1]
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta cabeça porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais o peso desse relógio.
A casa é sua. Arnaldo Antunes
Margherita Laera é uma professora e pesquisadora italiana, formada em letras clássicas, literatura comparada e estudos teatrais em Milão, Paris e Londres. Ela já lecionou em diversas universidades na Inglaterra e desde 2012 é professora de dramaturgia e estudos teatrais na Universidade de Kent em Canterbury. Ela se dedica aos estudos sobre migrações, línguas modernas relacionando-os com os estudos literários de base culturalista. A pesquisadora possui ampla experiência no trabalho com adaptações e traduções de textos teatrais greco-romanos e modernos. Margherita Laera é também coordenadora da rede de pesquisas European Theatre Reserch Network. Como tradutora, transita entre o italiano e a língua inglesa com várias traduções de textos teatrais. Ela também é organizadora de coletâneas e obras coletivas que problematizam questões relacionadas às diferentes dramaturgias e suas traduções e adaptações.

Entre nós, foi agora em 2025 que a Editora Temporal recepcionou um dos últimos trabalhos de Margherita Laera, o livro Theatre and translation, publicado originalmente em inglês em 2020. Trata-se de uma recepção das mais cuidadosas visto que, inicialmente, o livro ainda em inglês fora objeto de leitura, estudo e análise em disciplina dedicada aos estudos da tradução no âmbito do curso de letras da Universidade Federal do Paraná. A disciplina ministrada por Ruth Bohunovsky, tradutora, professora e pesquisadora consagrada aos estudos da tradução, no curso de letras da UFPR, encontrou a cumplicidade tradutória de Gisele Eberspächer, Ana Carolina Oliveira Freitag, Juliana Fogiato Rodrigues, Laísa Viegas e Karen Silva, todas hoje já formados e com dedicação profissional aos estudos e trabalhos associados ao exercício da tradução. A publicação em português contou ainda com um prefácio — “Afinal, o que envolve a tradução de teatro? Por uma prática ética e holística” — escrito por Alinne Balduíno P. Fernandes, também professora de dramaturgia e tradução, docente da Universidade Federal de Santa Catarina.
Além de uma introdução intitulada “Falar por/para/em nome de”, o livro escrito por Margherita Laera, está organizado em três partes, respectivamente que indagam: “I. O que? Definições para a tradução”; “II. Como? Práticas e políticas da tradução” e “III. Por que? A favor de mais traduções”. Complementa ainda o projeto editorial do livro algumas “Sugestões de leitura” e um “Índice remissivo”. Com uma linguagem fluída e direta essa tradução do livro de Margherita Laera se apresenta como um excelente instrumento de trabalho tanto no tocante a procedimentos efetivamente práticos no caminho de uma tradução, quanto no tocante às considerações mais teóricas e conceituais na exploração de fundamentos e subsídios que ajudem a pensar o trabalho do tradutor amador ou profissional, literário ou técnico, romanesco ou teatral.
Na sua introdução, Margherita Laera reúne as primeiras dúvidas de quem parte na direção do trabalho de tradução. Para onde se dirige essa nova enunciação da coisa a ser traduzida? Se fala por alguém, para alguém ou em nome de alguém? A autora deixa entrever nessa introdução suas questões fundamentais que permeiam todo o livro. Um livro, como ela mesma afirma, que não pretende “prescrever” e sim “questionar”. Desse modo, sua visada é propositiva não ignorando o lugar de onde oferece ao leitor seu ponto de vista. Margherita Laera é uma mulher branca e italiana, que vive e trabalha à sombra da língua e da cultura inglesa em Kent no Reino Unido. Essa particularidade não deixa de conferir à autora um perfil desterritorializado no espírito, na pele e na língua. Perfil este que certamente conforma sua pratica como pesquisadora dedicada aos estudos feministas e tradutora de origem meridional. Emerge, portanto dessa redação introdutória a questão da diversidade do(s) Outro(s) espectadoras e ouvintes. Como ela mesma reforça na conclusão dessa introdução, o livro deseja contribuir para o aperfeiçoamento do trabalho interpretativo daquelas e daqueles agentes criativos que recontam em nome de outros e outras, falando junto com e não somente por/para elas e eles.
Margherita Laera sabe que pesquisar é interrogar um objeto, colocando-o em relação com algo-outro. É, se debruçar sobre uma fonte. Assim, traduzir, permito-me parafrasear Georg Büchner no seu Woyzek, é olhar dentro dos olhos do outro e compartilhar com novos outros a vertigem desse abismo que brota dessa troca de olhares. Ao mesmo tempo também é interrogar-se, olhando para si mesma, em busca de um comportamento criativo, no passo a passo diário ou na velocidade da entrega da encomenda-tradução. Essa prática tradutória que é investigativa, a autora não nos deixa esquecer que também é transitória. E é exatamente essa transitoriedade que impulsiona Margherita Laera a dar seguimento às suas interrogações.
No tocante a primeira pergunta no capítulo I. “O que? Definições para a tradução”, Margherita Laera apresenta acepções diversas para tradução. Inicialmente, ela convida o leitor para entrar nos “labirintos etimológicos”, com direito a uma surpreendente parada reflexiva diante do canibalismo caraíba do nosso Oswald de Andrade. Passando pela noção japonesa de que traduzir também é “mudar de ideia” ou “mudar de raciocínio”, o leitor é atraído a tomar a metáfora da xícara de chá como uma ilusão da equivalência. Perceber o gesto criativo de traduzir, reforça Margherita Laera, equivale a pensar a tradução tanto com a atuação, quanto com a encenação de um texto.
A encenação teatral como meio e obra tradutória é fundamentada pela aproximação que faz Margherita Laera do pensamento teatral de Antoine Vitez, Augusto Boal e Jacques Lecoq. Tão diversos entre si, cada um desses diretores-pedagogos agregou às suas práticas estéticas e formativas atitudes criativas tradutórias, como por exemplo, comenta a autora sobre Boal, para quem “traduzir conceitos para linguagens corporais é crucial a fim de estabelecer um consenso entre artistas e espectadoras, uma vez que isso multiplica a atribuição de significados através da tradução” (p. 54).
O difícil trabalho de definir passa igualmente pela concepção da tradução como adaptação que em si aporta todos os seus dilemas criativos já notados por Linda Hutcheon, lembrada por Margherita Laera. Isso inspira nossa autora a conceber seis variáveis possíveis nesse jogo adaptativo: linguagem, meio, gênero, cultura, tempo e ideologia (p. 57). Por fim, os dilemas da adaptação intercultural fecham essa primeira parte com exemplos dos mais interessantes que ilustram a dificuldade de se fabricar definições rígidas ou definitivas devido exatamente a essa transitoriedade entre as culturas nos diversos tempos e nos mais variados espaços.
No capítulo II, Margherita se pergunta “Como? Práticas e políticas da tradução”, e abre seu capítulo relatando a projeto da Royal Shakespeare Company na China. Fica visivelmente destacado o embate entre o idioma chinês e o inglês. O projeto cooperativo de mútua tradução de textos teatrais entre as duas línguas esbarra nas vocações colonizadoras ou de dominância linguística de ambas as partes envolvidas no projeto internacional, além é claro de concepções distintas sobre a linguagem teatral. Efetivamente, o soft-power desempenhado pela língua inglesa possui um peso que ainda influi na balança das trocas interculturaise simbólicas em nosso mundo capitalista e globalizado.
Em seguida a reflexão de nossa autora fica por conta da ética da tradução teatral enquanto representação que evoca elementos sonoros entre uma oralidade mais elaborada, afeita a “registro elevados, arcaicos ou literários” (p. 76) e para isso Margherita Laera ilustra sua posição com exemplos de encenações de Romeo Castelucci e Robert Wilson. A critica ao etnocentrismo na prática tradutória é reforçada pela retomada da argumentação de Lawrence Venuti. As teorias de Venuti, segundo Margherita Laera, devem ser compreendidas e aplicadas à representação teatral por meio de “estratégias traduzidas” e eu acrescentaria ainda sincronizadas com a linguagem da encenação teatral.
É na seção seguinte, porém, que Margherita Laera traz uma contribuição das mais ímpares ao associar o trabalho da tradução às relações possíveis entre um anfitrião e seu hóspede. Não fosse a autora originária da península itálica, onde há séculos praticaram-se ritos e contam-se histórias acerca da hospitalidade, que se destaca inclusive como importante virtude reciclada pelo mundo cristão. Há nessa prática uma conduta cívica ao mesmo tempo que religiosa e neste caso específico, reforça a autora, seu aspecto criativo em relação à tradução.
Para tanto ela contrapõe o “assimilacionismo francês” ao “multiculturalismo britânico”, onde ambos exercem o papel de anfitriões em relação ao outro que é seu hóspede. A dificuldade percebida pela autora é que nem sempre “a migração (ou hospitalidade) é, com frequência, percebida como algo em desacordo com o modo de união que chamamos ‘nação’ e suas ilusões de homogeneidade” (p. 86). Isso leva nossa autora a lançar dois paradigmas, o do “cosmopolitismo” e da “crioulização”. E dessa maneira questiona-se sobre o lugar do teatro/tradução no processo de des-opressão entre as nações desde os velhos projetos coloniais ou as novas formas de submissão entre as nações no mundo capitalista global. A procura é por novos modos de hospedar e ser hospedado que podem advir desse comportamento cosmopolita ou do processo de crioulização que se opôs ao conceito de negritude forjado na primeira metade do século XX, nos diz a autora.
Finalizando o capítulo, Margherita Laera descreve suas experiências a frente de projetos tradutórios/teatrais onde teatro e tradução caminham juntos. Nota-se um engajamento político e uma preocupação ética condizente com o tempo presente, que foi o tempo das discussões sobre o referendo do Brexit. Trata-se de um programa, ela nos descreve detalhadamente, que se poderia denominar de pedagógico ou formativo em que a tradução se posiciona como um “imperativo ético” no ambiente de uma sociedade multicultural como a britânica. Foi assim que numa “época em que a relação do Reino Unido com a Europa estava (e, enquanto escrevo, ainda está) sendo coletivamente examinada na esfera política, decidimos traduzir de três a quatro línguas europeias imigrantes mais faladas no Reino-Unido” (p. 97).
Finalmente no capítulo III. “Por quê? A favor de mais traduções”, a pesquisadora retoma, à sua maneira, o ideário de um teatro popular, isto é, Margherita Laera recupera reoxigenando, em termos de expansão tradutória, os princípios de um “teatro de elite para todos”, como formulado no imediato pós-guerra, por diretores como Jean Vilar e Giorgio Strehler. Evidentemente, a autora explicita em seus argumentos, como ela escreve, o trabalho com a tradução teatral. Ela enfatiza as operações de alteridade quando nos convoca a levar para os espectadores histórias de outras pessoas, proporcionando a esse mesmo público o seu encontro com vozes e falas divergentes, que nem sempre estão facilmente ao alcance de uma sociedade hospitaleira.
E por fim, Margherita Laera argumenta sobre a importância de tornar o teatro acessível para todos os segmentos sociais o que a aproxima dos propósitos de uma política teatral inclusiva e ativa na descentralização, na promoção do acesso universal a essa atividade. Neste caso, “um teatro traduzido” para além das fronteias, além das formalidades entre identidades nacionais e regionais, considerando-se uma atitude de alteridade empática criativa acolhendo a diversidade de histórias de vida, gêneros, idades, classes sociais, etnias, orientações sexuais, religiões, escolhas políticas…
Margherita Laera defende os mesmos pressupostos acerca de uma política tradutológica no âmbito literário, num esforço de resistência, numa espécie de cruzada contra a dominação linguística. Assim como Pascale Casanova, que afirma no seu livro, A língua mundial: tradução e dominação (Editora da UFSC/UNB, 2021), que quanto mais há traduções menor é a dominação linguística. Quanto mais numerosas forem as traduções teatrais, maiores serão as chances de que o outro (de culturas distintas da nossa) possa nos ser representado, possa vir a ser acolhido e hospedado na nossa própria cultura sem o estabelecimento de hierarquias ou dominações linguísticas.
Uma prova viva desse deslocamento linguístico em termos teatrais pode ser apreciada na política que vem sendo adotada pelo Festival de Teatro de Avignon. Tiago Rodrigues, diretor do festival francês, depois de convidar a língua inglesa e a espanhola, escolheu para sua 79ª. edição em 2025 a língua árabe. Este não seria um sintoma das novas relações entre línguas, tradução e teatro? Um sintoma de sincronia entre produtores, tradutores e encenadores? O futuro nos dirá sobre, a utopia que ainda é hoje, essa hospitalidade das línguas nos teatros traduzidas.
Referência
Margherita Laera. Teatro e tradução. Trad. Ruth Bohunovsky; Gisele Eberspächer, Ana Carolina Oliveira Freitag, Juliana Fogiato Rodrigues, Laísa Viegas e Karen Silva. Prefácio de Alinne Balduíno Fernandes. São Paulo: Temporal, 2025, 132pp.
[1] Walter Lima Torres Neto é professor de estudos teatrais na UFPR. É autor de Introdução à direção teatral (Editora da Unicamp, 2021), Quarta parede: tópicos de cultura teatral (Giostri, 2024), Ensaios de cultura teatral (Paco Editorial, 2016) e organizador de várias obras como Teatro em francês: quando o meio não é a mensagem (Editora da UFPR, 2018) ou A modernidade em cena: 50 anos de teatro em Curitiba (Kotter Editorial, 2022).

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